RAFAEL LOZANO-HEMMER: "CHEGÁMOS AO FIM DO HUMANISMO"
Rafael Lozano-Hemmer foi o principal organizador da 5ªCyberConf que se realizou na capital espanhola. Media artist como agora soi classificar-se, Rafael trabalha em áreas de vanguarda tais como a telepresença, teatro tecnológico, instalações e «performances» (o léxico artístico anda a pedir forte reciclagem). As suas obras foram expostas em múltiplos lugares: Musée d'Art Contemporain (Montreal), ARCO (Madrid), Centro Nacional das Artes (México), European Media Art Festival (Osnabrück), Karlstad University (Suécia), Akademie der Bildenden Kunste (Nuremberga), Music Gallery (Toronto), Musée du Québec (Québeque), Hallwalls Gallery (Buffalo) e SIGGRAPH'93 (Anaheim). Excepcional poliglota para um castelhano, tem realizado também várias conferências, no Art Futura do ano passado, no Milia e na ARCO, por exemplo. Editou, por convite, um número da célebre revista Leonardo, e é colaborador regular da Mediamatic Interactive Publishing de Amsterdão. Pelos prémios, vamos passar uma esponja sem deixar, contudo, de referenciar a sua mais importante peça de telepresença -- "The Trace" -- distinguida no 1995 Ars Electronica Festival de Toronto.
Quem consultar a Internet, ficará ainda a saber que Rafael estudou Físico-química (physical chemistry) na Universidade de Concordia, em Montréal, um tema estranho do qual alega apenas se lembrar do nome da tese: "Ester Cleavage by Cyclodextrins in Aqueous Dimethyl Sulfoxide Mixtures: Substrate Binding versus Transition State Binding". Terá sido por isso que mudou de profissão?
E se estamos em plena era de construção de «auras», ocorre o seguinte paradoxo: a nível da pintura digital, por exemplo, perdes de facto a «aura» visto que podes fazer quantas cópias desejares; mas se falares de arte interactiva ou de instalações, é o inverso, ganhas «auras».
Como sabes, a arte electrónica é um campo vastíssimo que inclui todo o tipo de formatos e de estéticas; e a mim, a que me interessa particularmente é a das instalações, que não só podem ser disseminadas pelas redes, como «obrigar» as pessoas as deslocarem-se de modo a terem uma representação de tipo arquitectónico com a peça; doutro modo: o público assiste à peça.
RL-H: Exactamente. O público é, hoje e mais que nunca, parte integrante da obra. Sempre o foi, mas durante a época moderna tentou-se a pureza da arte, categorias universais, enquanto que agora se pensa muito no público e na sua integração na obra de arte. Duchamps dizia «o olhar é o quadro», é muito importante entender isso.
Mas, por outro lado, o indivíduo sobrevive a nível estatístico. Quer dizer, estamos num momento em que o indivíduo se converte num x, em pequenos dados dentro das redes. À à medida que evoluiem as redes -- as redes de consenso, as redes democráticas, as redes das relações do tecido social em si mesmo -- estas têm cada vez mais a ver com dados estatísticos. Isso preocupa-me sobremaneira porque não creio que, todavia, exista uma política que possa entender as relações entre os movimentos estatísticos e a verdadeira mudança do Poder.
Voltando à tua pergunta, creio que sim, que há possibilidades de um regresso à uma certa «comunhão». O que seguramente é práctico, é que essa comunhão exista através de um cristal (no sentido de ecrã). Terás o mundo ao alcance da tua mão, mas sempre através do cristal, terás sempre a informação... não filtrada mas... detida por esse cristal, esse obstáculo do ecrã catódico. Eu não sou -- como aliás, penso, todas as pessoas que assistem à CyberConf -- nem pessimista nem optimista em relação à tecnologia. Vejo muitas promessas e vejo muitas ameaças.
Há muitas investigações em curso como, por exemplo, eliminar o ecrã catódico e disparar imagens directamente para a retina.
O contexto no qual os computadores são utilizados é demasiado corporativo. Creio que, quando os mostradores e os periféricos mudarem, iremos incorporar na arte e na na computação outro tipo de contexto: a cama, o duche, o parque, a montanha. Isto irá mudar o nosso conceito de computação. Na realidade já o está a fazer.
Vejo, na computação, duas grandes tendências: uma delas, que se tornou clara nos últimos cinco anos, é a ubiquidade -- os computadores miniaturizam-se, desaparecem e estão em todo o lado); a outra, da qual se fala menos, é a da monumentalidade da computação. Ao mesmo tempo que desaparece, encobre-te. Como se fosse uma casa.
Explica-me qual a ideia por detrás da tua última instalação, «O Rastro»?
As propostas ciberpunk não me interessam; ou as de John Perry Barlow quando ontem disse que «somente um mundo de cérebro». Isto é baseado na ideia judaico-cristã da separação da mente e do corpo. Creio que isso não é correcto: o corpo tem de ir para o ciberespaço. Ou mais interessante -- o que tentei em «O Rastro» -- que a virtualidade venha ao nosso corpo.
Deixa-me aproveitar a oportunidade para te falar de duas outras ideias que penso fundamentais: a desterritorialização, que nos permite desfazermo-nos do conceito do Estado-nação, destas fronteiras. A outra é a destemporalização: no mundo virtual não só viajamos no espaço como também no tempo. Dou-te um exemplo, há um jogo de Realidade Virtual chamado «Virtus», que traz uma cena do assassinato de Kennedy. Está feito de forma bastante primitiva, mas tu podes assumir o ponto de vista de Kennedy, de Jacqueline, do franco-atirador, dos agentes da CIA. Digamos que podes «visitar» o acontecimento. Isto vai ter implicações muito importantes na forma como entendemos a História. A História é, a meu ver, uma grande construção virtual. E iremos regressar a ela e reconstruí-la.
Por outro lado não estou de acordo com Mark Pesce quando ele diz que a solução é que todos nos vigiássemos uns aos outros. Creio que a solução está numa série de tácticas de subversão, dentro das quais salientaria a mentira, que te pode ajudar a criar máscaras, múltiplas identidades.
O sistema de vigilância global irá completar-se -- não realmente paralizar-se -- mas nunca haverá potência suficiente, velocidade suficiente... estaremos sempre viajando nessa regressão absoluta em que as bases de dados se comunicam para actualizar-se. Isto é uma coisa que me fascina.
«O Rastro -- presença remota insinuada»
(col. Will Bauer)
Estudo de «ciber-presença»: as implicações da extensão do corpo e da mente através da telepresença. O espaço virtual e o espaço real, o corpo virtual e o corpo real fundem-se numa nova tele-virtualidade que chega onde a televisão, provavelmente, jamais chegará.
«Mythosis»
MITOSIS -- Biol. O método habitual de divisão celular. MYTHOSIS -- Neol. Um mito em estado de constante transformação. MITOCHONDRIA -- Biol. Um corpo em forma de fio, que ocorre no citoplasma das células.
MYTHO-CHONDRIAC -- Neol. Uma pessoa que se preocupa demasiado com os seus próprios mitos. Isigone descreve aqueles entre os Tribalos e os Iliricos capazes de matar olhando com fúria para os olhos de alguém, e como essas pessoas possuiam duas pupilas em cada olho (Antonio de Torquemada, in «The Garden of Curious Flowers», 1570).
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