2.17.2005

RAFAEL LOZANO-HEMMER: "CHEGÁMOS AO FIM DO HUMANISMO"

Rafael Lozano-Hemmer foi o principal organizador da 5ªCyberConf que se realizou na capital espanhola. Media artist como agora soi classificar-se, Rafael trabalha em áreas de vanguarda tais como a telepresença, teatro tecnológico, instalações e «performances» (o léxico artístico anda a pedir forte reciclagem). As suas obras foram expostas em múltiplos lugares: Musée d'Art Contemporain (Montreal), ARCO (Madrid), Centro Nacional das Artes (México), European Media Art Festival (Osnabrück), Karlstad University (Suécia), Akademie der Bildenden Kunste (Nuremberga), Music Gallery (Toronto), Musée du Québec (Québeque), Hallwalls Gallery (Buffalo) e SIGGRAPH'93 (Anaheim). Excepcional poliglota para um castelhano, tem realizado também várias conferências, no Art Futura do ano passado, no Milia e na ARCO, por exemplo. Editou, por convite, um número da célebre revista Leonardo, e é colaborador regular da Mediamatic Interactive Publishing de Amsterdão. Pelos prémios, vamos passar uma esponja sem deixar, contudo, de referenciar a sua mais importante peça de telepresença -- "The Trace" -- distinguida no 1995 Ars Electronica Festival de Toronto.

Quem consultar a Internet, ficará ainda a saber que Rafael estudou Físico-química (physical chemistry) na Universidade de Concordia, em Montréal, um tema estranho do qual alega apenas se lembrar do nome da tese: "Ester Cleavage by Cyclodextrins in Aqueous Dimethyl Sulfoxide Mixtures: Substrate Binding versus Transition State Binding". Terá sido por isso que mudou de profissão?

Ontem falavas do conceito de Walter Benjamin para distinguir, na arte, o original da cópia: a «aura». Que mudanças podemos esperar, na Era Digital, tanto em relação à produção artística como à economia da arte?

RL-H: O livro de Benjamin, «A Arte na Era da Reprodutibilidade Mecânica», sugere-me a seguinte reflexão sobre o desaparecimento da «aura»: no mundo digital, no mundo da arte electrónica, já não se aplica a ideia de Benjamin, de que a reprodução extirpa a «aura». Estamos a viver o regresso da «aura», o retorno da ideia de uma experiência singular e original desde uma perspectiva fresca e muito pessoal. A arte electrónica cria «auras», penso que é isso, sobretudo, o que faz. Ou seja, numa mesma peça, qualquer participante ou espectador tem a sua própria viagem dentro da peça. A electrónica ressalta a singularidade da recepção da obra de arte.
E se estamos em plena era de construção de «auras», ocorre o seguinte paradoxo: a nível da pintura digital, por exemplo, perdes de facto a «aura» visto que podes fazer quantas cópias desejares; mas se falares de arte interactiva ou de instalações, é o inverso, ganhas «auras».

Como sabes, a arte electrónica é um campo vastíssimo que inclui todo o tipo de formatos e de estéticas; e a mim, a que me interessa particularmente é a das instalações, que não só podem ser disseminadas pelas redes, como «obrigar» as pessoas as deslocarem-se de modo a terem uma representação de tipo arquitectónico com a peça; doutro modo: o público assiste à peça.

Queres dizer que a «aura» já não emana somente da obra, mas igualmente da experiência?

RL-H: Exactamente. O público é, hoje e mais que nunca, parte integrante da obra. Sempre o foi, mas durante a época moderna tentou-se a pureza da arte, categorias universais, enquanto que agora se pensa muito no público e na sua integração na obra de arte. Duchamps dizia «o olhar é o quadro», é muito importante entender isso.

Ontem falou-se aqui muito de ética e da cultura das redes. Pensas que estamos a regressar, ou a criar, o inconsciente colectivo? A uma época em que se desvalorizará o indivíduo celebrado pelo romantismo?

RL-H: Creio que estamos, realmente, no fim do humanismo. Estamos no final de um projecto durante o qual se cria, se inventa, o indivíduo, este personagem que está no topo da pirâmede evolutiva. Agora encontramo-nos «dentro» de um ecossistema -- não apenas um ecossistema natural mas também um ecossistema digital -- em que, mais apropriadamente, lhe chamaria «divíduo», quer dizer: alguém que se pode dividir. Quanto estás na rede, todas as personas distintas que constituíem o teu ser podem sair e reluzir. A inter-subjectividade: não és uma pessoa mas todos os que leste, todos os que ouvistes. E isto, digamos, expressa-se preferencialmente através da rede.
Mas, por outro lado, o indivíduo sobrevive a nível estatístico. Quer dizer, estamos num momento em que o indivíduo se converte num x, em pequenos dados dentro das redes. À à medida que evoluiem as redes -- as redes de consenso, as redes democráticas, as redes das relações do tecido social em si mesmo -- estas têm cada vez mais a ver com dados estatísticos. Isso preocupa-me sobremaneira porque não creio que, todavia, exista uma política que possa entender as relações entre os movimentos estatísticos e a verdadeira mudança do Poder.
Voltando à tua pergunta, creio que sim, que há possibilidades de um regresso à uma certa «comunhão». O que seguramente é práctico, é que essa comunhão exista através de um cristal (no sentido de ecrã). Terás o mundo ao alcance da tua mão, mas sempre através do cristal, terás sempre a informação... não filtrada mas... detida por esse cristal, esse obstáculo do ecrã catódico. Eu não sou -- como aliás, penso, todas as pessoas que assistem à CyberConf -- nem pessimista nem optimista em relação à tecnologia. Vejo muitas promessas e vejo muitas ameaças.

Pensas que o cristal vai existir durante muito tempo?

RL-H: Sim, creio que continuará a existir, mas a forma como interactuamos com ele irá transformar-se. O que mais odeio no multimédia é o botão. Os ecrãs não existem para ser «apertados» mas sim «acariciados». Um ecrã deve ser uma superfície suave que convide à carícia. Penso que, no futuro, teremos esse tipo de ecrãs.

Há muitas investigações em curso como, por exemplo, eliminar o ecrã catódico e disparar imagens directamente para a retina.
O contexto no qual os computadores são utilizados é demasiado corporativo. Creio que, quando os mostradores e os periféricos mudarem, iremos incorporar na arte e na na computação outro tipo de contexto: a cama, o duche, o parque, a montanha. Isto irá mudar o nosso conceito de computação. Na realidade já o está a fazer.
Vejo, na computação, duas grandes tendências: uma delas, que se tornou clara nos últimos cinco anos, é a ubiquidade -- os computadores miniaturizam-se, desaparecem e estão em todo o lado); a outra, da qual se fala menos, é a da monumentalidade da computação. Ao mesmo tempo que desaparece, encobre-te. Como se fosse uma casa.

Explica-me qual a ideia por detrás da tua última instalação, «O Rastro»?

RL-H: O objectivo de «O Rastro» (The Trace) é dar a duas pessoas um espaço real -- ainda que estejam separadas -- não através de um ecrã, mas sim por telepresença, como se fosse uma projecção holográfica. O que tento fazer nesse projecto é, até certo ponto, romper com o interface. Penso que o interface tende a desaparecer. Peter Bible afirmou que metáfora da «janela para o mundo» -- que é a metáfora renascentista para o computador -- se está a converter na «porta para o mundo». O computador como porta. Este é, definitivamente, o campo a que todos nos dirigimos. O teclado, p.e., é um equívoco como forma de comunicar. Não está pensado para a interacção em tempo real, para agir com o corpo.
As propostas ciberpunk não me interessam; ou as de John Perry Barlow quando ontem disse que «somente um mundo de cérebro». Isto é baseado na ideia judaico-cristã da separação da mente e do corpo. Creio que isso não é correcto: o corpo tem de ir para o ciberespaço. Ou mais interessante -- o que tentei em «O Rastro» -- que a virtualidade venha ao nosso corpo.
Deixa-me aproveitar a oportunidade para te falar de duas outras ideias que penso fundamentais: a desterritorialização, que nos permite desfazermo-nos do conceito do Estado-nação, destas fronteiras. A outra é a destemporalização: no mundo virtual não só viajamos no espaço como também no tempo. Dou-te um exemplo, há um jogo de Realidade Virtual chamado «Virtus», que traz uma cena do assassinato de Kennedy. Está feito de forma bastante primitiva, mas tu podes assumir o ponto de vista de Kennedy, de Jacqueline, do franco-atirador, dos agentes da CIA. Digamos que podes «visitar» o acontecimento. Isto vai ter implicações muito importantes na forma como entendemos a História. A História é, a meu ver, uma grande construção virtual. E iremos regressar a ela e reconstruí-la.

Mas apesar da desterritorialização, pode existir, e cada vez mais, um controlo efectivo dos cidadãos, através dos tais dados estatísticos de que antes falastes...

RL-H: Quando falamos em vigilância, em controlo, temos tendência para dizer futuro. Mas na realidade já existem bancos de dados muito concretos dos perfis sócio-económicas das pessoas e das suas preferências.
Por outro lado não estou de acordo com Mark Pesce quando ele diz que a solução é que todos nos vigiássemos uns aos outros. Creio que a solução está numa série de tácticas de subversão, dentro das quais salientaria a mentira, que te pode ajudar a criar máscaras, múltiplas identidades.

Uma coisa é manter dados sobre um indivíduo; outra, sobre um «divíduo»...

RL-H: Exactamente (risos), vão ser precisas muitas bases de dados. Nas redes não se está apenas a fazer bases de dados sobre os indivíduos, mas também bases de dados sobre bases de dados. Isto é muito curioso. Há pouco tempo li algures que, neste preciso momento, a grande maioria das comunicações na rede não são comunicações entre pessoas, mas sim comunicações entre máquinas. Ou seja, o VISA fala com bancos, Altavista faz uma relação do que o Lycos tem, etc.,etc., e então ocorre algo realmente curioso: num dado momento, as comunicações do planeta -- pelo menos a grande maioria delas -- vão ser cruzamentos de referências (cross-references) em que as bases de dados se buscam umas às outras numa regressão contínua, até à paralização total. É como apontares uma câmara para o ecrã, vês dentro, dentro, dentro... a base de dados é igual.
O sistema de vigilância global irá completar-se -- não realmente paralizar-se -- mas nunca haverá potência suficiente, velocidade suficiente... estaremos sempre viajando nessa regressão absoluta em que as bases de dados se comunicam para actualizar-se. Isto é uma coisa que me fascina.


«O Rastro -- presença remota insinuada»

(col. Will Bauer)

Estudo de «ciber-presença»: as implicações da extensão do corpo e da mente através da telepresença. O espaço virtual e o espaço real, o corpo virtual e o corpo real fundem-se numa nova tele-virtualidade que chega onde a televisão, provavelmente, jamais chegará.

«Mythosis»

MITOSIS -- Biol. O método habitual de divisão celular. MYTHOSIS -- Neol. Um mito em estado de constante transformação. MITOCHONDRIA -- Biol. Um corpo em forma de fio, que ocorre no citoplasma das células.

MYTHO-CHONDRIAC -- Neol. Uma pessoa que se preocupa demasiado com os seus próprios mitos. Isigone descreve aqueles entre os Tribalos e os Iliricos capazes de matar olhando com fúria para os olhos de alguém, e como essas pessoas possuiam duas pupilas em cada olho (Antonio de Torquemada, in «The Garden of Curious Flowers», 1570).

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