2.22.2005

SHARI STEELE (EFF): PACIFICAR O TERRITÓRIO DOS "FORA-DA-LEI"

A EFF-Electronic Frontier Foundation foi criada na primavera de 1990 por John Barlow (escritor das líricas dos Grateful Dead), Mitch Kapor (fundador da Lotus Development Corporation), Steve Wozniak (o sócio de Jobs na criação da Apple/MacIntosh) e John Gilmore (pioneiro da Sun MicroSystems). No seu horizonte perfilham-se duas batalhas fundamentais: a do livre acesso às comunicações, e a protecção dos direitos civis dos «fora-da-lei». Que na maior parte dos casos só o são porque do velho Oeste selvagem à fronteira electrónica pouco ou nada mudou, é a lei do mais forte que impera. Shari Steele, advogada, é directora dos serviços legais da EFF e esteve em Lisboa para participar no colóquio «Portugal na Internet».
Em Setembro de 1988, o ciberpirata conhecido por «Profeta» penetrou no AIMSX da BellSouth (uma das filiais da AT&T, a maior companhia telefónica americana), e fez uma cópia do documento E-911 para o seu próprio computador ao mesmo tempo que o lançava na Jolnet. O E-911 descrevia o funcionamento do serviço telefónico de emergência, para o qual se marca o número 911 nos Estados Unidos, como o 115 em Portugal.
Craig Neidorf, mais conhecido por «Knight Lightning», edita o conteúdo do E-911 na sua revista, «Phrack». Seria preso a 9 de Fevereiro de 1990.
Já em tribunal, a BellSouth reclama que a informação contida no E-911, para além de confidencial, tem um valor aproximado de 80 mil dólares. O advogado de defesa explica que essa informação vale 13 dóleres e pode ser obtida fácilmente através da própria Telefónica: o documento é enviado por correio, por um preço simbólico, a qualquer assinante que o solicite. O julgamento é anulado e as fichas dos Serviços Secretos sobre «Knight Lightning» são destruídas, mas este fica endividado para com os advogados. A EFF participa, ajudando-o monetáriamente.
O julgamento de Steve Jackson arrasta-se por mais tempo. Os Serviços Secretos, duas semanas após a prisão de «Knight Lightning» e sob a acusação de que na Steve Jackson Games Inc. existiria também uma cópia do E-911, invadiram a empresa confiscando-lhe todos os computadores e «diskettes». Steve Jackson viu-se impedido de publicar a sua última obra, pois a única cópia existente estava armazenada no disco duro de um desses computadores. Foi obrigado a despedir nove dos seus dezanove empregados e esteve à beira da falência. A EFF encarregou-se do seu processo. Ganhou duas das três petições movidas contra o Estado.
Estes acontecimentos foram o início da maior ofensiva de repressão aos «fora-da-lei» electrónicos organizada pelos Serviços Secretos, National Security Agency e FBI, sob o nome de código «Operation SunDevil».
O E-911 foi o móbil, ou o delito palpável, de toda a repressão. Mas o que realmente inspirou a Operação Sol do Diabo foi a falha do sistema da AT&T no dia 15 de Janeiro de 1990, que deixou grande parte da América sem comunicações telefónicas. Nesse dia comemora-se o feriado nacional de Martin Luther King, o que veio aumentar a suspeição de uma «acção concertada». Muito embora a AT&T tenha reconhecido que o «crash» não fora obra de quaisquer piratas cibernéticos mas de um erro no seu próprio «software», a comunidade telefónica, sedenta de vingança, decidiu acusar os «hackers» e fazer uma demonstração da sua força. Os «hackers» contra-atacaram, e a EFF desempenhou, e desempenha, um papel fundamental na luta pelos direitos e liberdades dos ciberitas. Shari Steele é uma das pessoas envolvidas nessa luta.

Quais as duas petições, no processo de Steve Jackson, em que vos foi dada razão e a outra que perderam?

A primeira prende-se com correio electrónico. Como Steve Jackson mantinha uma BBS, possuía no seu computador informação e correspondência de pessoas que não se encontravam sob investigação. Houve pois uma violação da privacidade. Apenas três dos utilizadores dessa BBS processaram o Estado. Todos eles têm agora direito a uma indemnização.
A segunda petição tem a ver com a protecção especial que os editores usufruem na lei americana, por causa da liberdade de expressão. Não é permitido, nos EUA, actuar de modo a que uma publicação seja abortada. No caso de Steve Jackson, deviam ter-lhe dado um pré-aviso, de modo a que pudesse efectuar qualquer tipo de cópia do livro que ia publicar. Como tal não foi feito, há também direito a uma indemnização.
A petição que não ganhámos diz respeito aos mandatos de busca. É possível efectuar uma busca e apreensão sem revelar ao investigado o conteúdo desse mesmo mandato, isto é, sem que ele saiba o que a polícia procura. O que nós solicitámos foi que o conteúdo do mandato de busca à empresa de Steve Jackson fosse tornado público. Para já não o conseguimos, mas como é proibido destruir esse tipo de informação, um dia saberemos o que lá estava escrito. A questão é saber se a apreensão do computador foi legal ou não.

No célebre caso do E-911, grande parte da investigação foi realizada pela segurança da BellSouth, ou seja, por investigadores privados. Quem actuou foram os Serviços Secretos. Nessa altura levantou-se a questão da legitimidade do processo, já que o público não tem acesso às informações de uma investigação privada.

É assim, de facto. Mas os SS actuaram em face de uma certa quantidade de informações que os investigadores privados lhes forneceram. E a partir do momento em que os SS detêm essas informações, elas passam a pertencer-lhes, e a todo o processo jurídico posterior. Desse modo, porque estão em poder de uma organização do Estado, o público terá direito a saber o que continha essa investigação.

Afirmou à pouco, durante a conferência, que a EFF se dedicava à acessibilidade da informação e à defesa dos direitos civis da comunidade electrónica. Se a segunda acção me parece mais clara, num mundo de injustiças sociais o que querem vocês dizer com «todos têm direito a pertencer à comunidade electrónica»? A pobreza é um problema estrutural das sociedades, não das redes.

Tem razão. Mas nós acreditamos que as telecomunicações devem ser consideradas como um bem essencial, como a àgua canalizada, p.e. Sabe que nos Estados Unidos a comunicação telefónica é considerada como tão básica que há muitos casos em que a sua instalação é subsidiada pelo Estado? Faz parte da nossa legislação. O que pretendemos é que as comunicações por computador usufruam das mesmas benesses. Por isso estamos sediados em Washington e esse trabalho consiste em pressionar os legisladores e o Congresso. O outro lado, do qual eu faço parte, dedica-se a prestar ajuda nos casos legais e em tribunal.

Há tempos a revista «Newsweek» falava dos sem abrigo («homeless») que tinham acesso a computadores. Como é que pessoas sem casa para morar podem surfar na rede?

Isso passa-se em Santa Mónica. São coisas da Califórnia. Como os chuveiros da praia não eram utilizados durante o período da noite, disponibilizaram-nos para que os «homeless» aí pudessem tomar banho. Depois a Universidade lembrou-se de instalar um terminal para eles. Não penso que seja um fenómeno significativo, mas parece que alguns, de facto, o utilizam.

Após a polémica do «clipper chip», eis que o FBI quer aprovar a «digital telephony». Pode-nos explicar?

O «clipper chip» permite a descodificação de mensagens cifradas, é uma «chave» para a descodificação que fica nas mãos do Governo. O argumento oficial para desdramatizar o «clipper chip» é que continua a ser possível o envio de mensagens em outros códigos, cuja «chave» não é detida por ele. É um contrasenso. Tem algum sentido pensar que os verdadeiros marginais, espiões, terroristas, etc., vão utilizar um código passível de ser lido pelo «clipper chip»? Então para que serve? Para monitorizar as mensagens inofensivas e o cidadão comum? Note que, no regulamento dos produtos importados pelos EUA, as tecnologias criptográficas são incluídas na lista de material de guerra. Importar um código é o mesmo que importar uma ogiva nuclear?
Quanto ao «digital telephoning», que ainda não foi aprovado pelo Congresso, obriga aos prestadores de serviços na rede a incluírem uma espécie de «porta das traseiras» nos seus computadores, de modo a que os investigadores possam aí penetrar a qualquer momento e monitorizar o que se passa.

O que é que você sabe da «Legion of Doom»?

Sei alguma coisa. O que é que quer saber?

(Olhar vagamente inquiridor)

Não lhe vou dizer quem são (risos). Mas posso dizer-lhe que não são mais que adolescentes, pálidos e curiosos, que não parecem nada ameaçadores. Criou-se uma imagem em torno da «Legion of Doom», e das suas potencialidades criminosas, que em nada corresponde ao que eles são.

A Era Electrónica, ao mesmo tempo que revela um Estado «orwelliano» e as paranóias dos Serviços Secretos, não veio permitir que jovens inocentes...

Eu não disse que eram inocentes...

...que jovens mais ou menos inofensivos possam dar de si uma ideia de extremo poder? Afinal «mandar abaixo» todo o sistema da AT&T é como um acto de guerra, capaz de causar prejuízos graves para o país.

Mas eles foram acusados disso? Não é possível. O «crash» da AT&T foi provocado por uma deficiência no programa. A empresa do Dave (apontando para o namorado, que confirma) foi responsável pelo programa, e sabem que existia um «bug». Isso foi uma pura especulação.


Especulação que funciona do mesmo modo que a imagem do Adamastor para os navegantes quinhentistas. O que não se sabe, atemoriza. «Não é do escuro que tenho medo, mas do que lá não vejo», dizia o outro. Os cibernautas dão um novo mundo ao mundo e terão que sofrer as tempestades e a cobiça. Mas sempre partem com uma vantagem: já se sabe que Terra é redonda e todos os caminhos vão dar à Net.

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