2.28.2005

ROY ASCOTT: A REALIDADE ESTÁ EM SALDO!

Quando Roy Ascott tomou a palavra no auditório do Centro Cultural de la Villa, pouco passava do meio-dia de quinta-feira (dia 19), nada me havia preparado para o impacto do seu discurso, potente como uma bomba de várias megatoneladas, avassalando-me os neurónios. Stephen Dawnkins, a física quântica e os «wormholes» serviram-lhe para denunciar um futuro que andamos longe de imaginar, entretidos com as nossas páginazitas de web e outras corriqueirices. A realidade está, hoje mais que nunca, a ser posta em causa; e um dos trabalhos mais importantes para que nos seja possível apreciar o futuro em consciência, é a urgente reciclagem das velhas ideias platónicas e/ou mecanicistas. Talvez até Einstein esteja errado. Vários físicos defendem que será possível utilizar os «wormholes» para percorrer distâncias imensuráveis no universo. Afinal, isso é o que todos os dias fazemos nos web-browsers, ao clicar numa link. O espaço e o tempo estão em mudança, o nosso cérebro está em mutação.
Encontrei-me com Roy Ascott no dia seguinte, no seu hotel, e fomos mais à conversa do que a uma entrevista. Ex-artista-plástico, «convertido» à arte telemática no início dos anos oitenta, Ascott é um dos pioneiros da exploração das potencialidades da Internet. E começou assim:

Ando cada vez mais preocupado com o impacto da cultura massificada na Internet; que lhe suceda o mesmo que sucedeu à televisão...

Penso que podemos dizer, com alguma margem de segurança, que isso é tão problemático na cabeça dos grandes operadores, tanto quanto para nós, participantes e comentadores. Não é certo e seguro que eles consigam controlar a largura de banda ou que consigam ser eficazes na Net. E isso é assim porque o público respondeu, de um modo muito rápido, à ideia de comunicação pessoal, de emissão (broadcasting) pessoal. É um meio muito interactivo e isso foi entendido logo desde o início.

Claro que as grandes corporações, tal como o são agora a Compuserve e a American Online (AOL) e assim por diante, entenderam desde logo que, para ganharem os seu dinheiro como grande corporação, tinham que vender a ideia do poder individual na Net. E essas vão ser as grandes corporações no futuro, do meu ponto de vista.

No entanto, e em segundo lugar, penso que poderemos esperar o ataque -- porque eu vejo-o, realmente, como uma manobra militar -- das grandes corporações, mas não desse modo que dizias porque eles sabem que a tentativa de controlar a network seria estúpido. O que eles fazem é controlar a educação numa fase muito jovem, porque o que aqui é importante é o comportamento, a atitude das pessoas, em relação à Net. Nós já estamos prontos para o media interactivo na forma de CD, sabemos que as pessoas têm comportamento navegatório (navigational behaviour), sabes, prontos a partir e sabendo como utilizá-lo. Mas que esperamos nós ver como reforço da visãodo mundo? Não pretendo que seja uma vasta conspiração mundial, mas pela simples natureza do ser humano, assistiremos a um reforço das velhas visões do mundo nestes novos CDs, nestas novas formas de arquivo interactivas. As crianças estão a apanhar, já desde o princípio, um conjunto de atitudes que se forem adquiridas, serão ainda inibitórias do uso criativo da Net.

O modo cru é dizer que os media emissores compram tempo ou largura de banda ou o que quer que seja para invadir a Net, mas eu penso que eles são suficientemente inteligentes para perceber que não ganhariam com isso. Mas se eles conseguirem convencer os miúdos na escola -- que é a razão porque vemos tantos programas de multinacionais generosamente doando fundos para CDs e trabalho online -- é porque esse é o modo de reforçarem a visão do mundo.

Há ainda outra questão -- que não é apenas a da comunicação, a capacidade que se abre -- mas a desta mudança desde o utilizar media de comunicação -- pintura, televisão, ou o que quer que seja -- para o utilizar como meio de expressão, que tem sido o conceito ocidental da arte: auto-expressão (self-expression). Auto-expressão, mas sempre dentro de um enquadramento que é dado, a visão do mundo que é dada (isto é mais ou menos assim: podes expressar-te livremente desde que dentro dos pârametros tal como vemos o mundo); a mudança disso para o que pode ser realmente revolucionário: permitir às pessoas construir a sua realidade.

Isto é, em minha opinião, a realidade está em saldo. A fisíca quântica mostra-o, a biologia mostra-o: a realidade está para ser redefinida. E este é um momento maravilhoso, penso, porque coisas como a Net, estes novos meios de comunicação, os sistemas digitais, oferecem-nos a possibilidade de estarmos envolvidos na construção da realidade, em vez de apenas a receber.

Como é que fazemos com que todos entendam que podem sentar-se no lugar do condutor? Isto é que torna o momento importante.

Por vezes volto à ficção científica, e encontro aí ideias como... esta mudança da auto-expressão para um pensamento colectivo, de uma comunidade que está online e assim participa colectivamente no pensar e no fazer; é como a telepatia. (Dissertação sobre o «The Andromeda Strain» de Phillip K. Dick).

Eu utilizo a palavra hipercórtex. Num certo sentido, somos também parte de um hipercorpo. Acho que estamos, realmente, a mover-nos na direcção dessa mudança paradigmática. Mas é importante frisar que a fase actual da tecnologia digital é muito transitória, é muito limitada; não é o fim do jogo, de modo algum. A Realidade Virtual, p.e., é abusada, é tratada com imenso respeito, mas é apenas um meio de continuar o velha visão do mundo. O espaço em que é construída é um espaço renascentista, e o mundo é visto em termos de superficies! A RV é apenas o estádio experimental (the test bed) daquilo que virá a ser verdadeira revolução, e que será a nanotecnologia, a engenharia genética, o relacionamento de sistemas neuroartificiais com sistemas humanos, isso sim é... profundo.

Mas sim, há modelos na ficção científica. A FC é arte, e como tal encontra-se aí tudo. O escritor que prefiro é um homem chamado Egan. O que ele faz é levar para bordo ideias da fisíca quântica, ideias do colapso da onda (wavefront) em momentos de connsciência, e explorar as implicações disso; explorar, p.e., na Realidade Virtual, como é que alguém poderá downloadar experiências cognitivas em sistemas artificiais de RV e como é que nós, como indivíduos, nos podemos relacionar com nós mesmos. Gosto muito destas coisas, e encontro muito alimento nessa escrita. Mas agora tantas dessas fantasias são reais: o biochip, o computador molecular, primitivo como é, é uma realidade.

Existe uma urgência. Comecei a trabalhar em redes em 1980 -- foi a primeira intervenção numa grande rede -- e comecei como um artista, se é que me compreendes, pensando «isto é uma coisa minha, faço-o como quero e vou andando». Agora, sinto, por todos nós, uma enorme responsabilidade, à medida que brincamos com estas coisas. Não quero soar pomposo, mas é mais que arte; há mais em jogo, agora, em cada movimento que fazemos. Por isso me preocupo com o modo frívolo como a Realidade Virtual está a ser usada.

Estamos a voltar à noção «primitiva», de ser como indivíduo mas igualmente como uma parte de um colectivo. Mas esse movimento não tem a mesma velocidade em todos os sítios. Ontem o Derrick de Kerckhove falou do «Virtual Tourist» como um exemplo máximo da arte nas redes. Mas quando browsamos para lá e vamos ao continente africano, o que vemos é um imenso Sahara com meia dúzia de servers na África do Sul. Que fossos podemos esperar na Aldeia Global?

Há uma série de coisas aí. Primeiro, e em relação à expansão e acessibilidade da Net, o demótico em si mesmo garantirá que o mundo todo ficará telematicamente ligado. Se olhar para o transistor -- o transistor de rádio -- duvido que haja algum local do mundo onde ele não esteja presente. Sabemos porquê: é um instrumento político poderosíssimo, etc. O demótico vê o mundo do mesmo modo. Tudo pelo que espera neste momento é pelo dinheiro digital. Uma vez que a criptação seja absolutamente segura -- nunca o será, isto é, desde que eles achem que o podem fazer -- não haja dúvidas que «eles» -- eles sendo as grandes corporações, o mercado em todas as suas formas -- alcançarão toda a gente. Porque sabes como é o mercado, se alguém te disser: «se fizeres isto ou aquilo receberás um tostão» tu respondes «um tostão? vá-se foder». Mas o mercado nunca diz isso. Sé é um tostão, é um tostão em todo o mundo. Não interessa quão pobre é a gente, basta olhar para Nova Iorque -- sabes (risos) é o microcosmo do mundo -- há ali gente pobre para além do que é credível; o mercado ainda assim está lá, o McDonalds está lá. Por isso a telemática também lá estará.

Em segundo lugar, penso que o fosso é falso. Há realmente um fosso... regressemos à telepatia de que me estavas a falar; quase toda a gente que conheces, em qualquer parte da sociedade, se os apanhares nas circunstâncias certas, e lhes disseres «já alguma vez teve uma experiência telepática? Já alguma vez sentiu que a sua avó estava a morrer, o seu cão?» eles responderão «sim. Mais ou menos». É o mesmo que o conhecimento do eu. Nós tratamos os vários eus, sobretudo desde o século XIX, como esquizofrenia. Mas toda a gente entende, se realmente os apanharmos na ocasião certa, «você, seguramente, não acredita que é só uma pessoa!? Que conhece a sua própia sexualidade? Os seus pensamentos sobre o mundo?» Nós temos várias posições, somos vários eus. E até interpretamos vários eus: para a esposa, para a amante, para o filho, para o patrão. Nós somos, afinal, comunicar com as pessoas, unificados por esta complexidade do eu. Por isso sou optimista em relação ao modo como os meus colegas artistas estão a responder a estas novas tecnologias. Há muito interesse na identidade, no ser (selfhood), na telepresença. Estou optimista porque penso que isto trará à nossa cultura maior compreensão sobre a complexidade do eu. Estamos a rolar.

Para terminar, fale-me dos seus projectos actuais.

O que neste momento me interessa é arquitectura, a arquitectura inteligente. Parece-me que há pouco a fazer, como artista, na biotecnologia -- ainda está ao nível dos pixels -- a partir do momento em que conseguirmos traduzir pixels em moléculas, aí é onde eu quero estar. Mas de momento, a área onde melhor podemos actuar é a do interface, a questão da habitação (housing) nesta inter-realidade, entre realidade material e a virtual -- não a tecnologia da RV, mas num sentido lato. Habitação e arquitectura urbana, nesta mutação paradigmática de que antes falei, é muito interessante. Neste momento estou a lidar com o assunto apenas teoricamente.

No meu centro de pesquisas, no País de Gales, estou a lançar um apelo ao financiamento para um concurso internacional da casa inteligente. Quase todo o trabalho que tem sido feito nesta área é-o através da Realidade Virtual; não foi construído materialmente, e eu quero estimular actividade nesse sentido.

Parece-me que os artistas estão em fuga massiva da superfície para a tridimensionalidade...

A pintura, como o teatro ou o cinema, tem o seu lugar. Nada os pode substituir. Mas o que penso que já não é válido é a pintura de representação. Isso é estúpido e ideologicamente perigoso.

Estou a trabalhar num projecto chamado A Arca Telemática, partindo da premissa de que há um dilúvio de dados (data deluge); a inundação é de dados e está a afogar o mundo. A questão é, o que iremos nós salvar? O que levaríamos connosco para bordo e o que transportariamos como sementes. Noé levou todo um conjunto de sementes para plantar; as nossas seriam: a vida artificial, nanotecnologia, esse tipo de coisas. Quero construir esta Arca como um web-site, provavelmente numa universidades. A ideia é ter pessoas a irem até às margens da Net, para além da Net, e descobrirem o que é que querem guardar. Vale a pena guardar? E como? E todas as questões de arquivo seguir-se-ão, etc.

ligação:

Biografia de Roy Ascott

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